Sinopse
Fátima Séneca

Devia ter trazido as botas vermelhas. Com estas de borracha vou espalhar-me nestes paralelos cheios de lodo pela certa. Se me tivesse lembrado que era nesta rua tinha trazido o carro . Estacionava-o ali ao lado da Cadeia da Relação. Mas talvez até tenha sido prudente ter vindo a pé, porque ali em frente ao tasco do cimo da rua havia aquele rumurejar brusco dos dealers. Para já nem falar da basófia amarela que saía pela porta, com os chulos a discutirem o jogo do FCP. Cada palavra soava a palavrão. Agora podia agarrar no telemóvel e simular que estava a conversar com alguém, mas o João já me explicou que isso atrairia muito mais infalivelmente um assalto. Não devia era ter trazido as máquinas fotográficas. Acho que esta bagagem é que me leva tão vacilante por aqui abaixo.
Podia ter combinado com a Carla ou com a Isabel para descermos a rua juntas. É que não se vê nada. Pois, mais outra lâmpada apagada à pedrada ali à frente. Não posso ir junto às casas por causa das caleiras-cascata, mas principalmente porque cada cárie de porta se pode fechar sobre mim. Que disparate ir assim a encher-me de calafrios, vou mas é andar calmamente, parar com esta ofegância ridícula, e descer como se tivesse ido só despejar o lixo ali ao largo, conforme aquela vizinha acabou de fazer. Não, vou acelerar até passar aquele grupinho que se encolhe no escuro, porque se vê logo que não sou vizinha nenhuma a escorregar por aqui abaixo com uma mochila e uma saca. Um deles está agarrado ao poste a vomitar. Não, há dois a vomitarem alternadamente, pelo meio de uma conversa encriptada. Sim, estavam a sortear quem ía agora comprar pó e onde. E que fazia aquele miudinho lá pelo meio, a estas horas e à chuva? Bem que hoje dispensava tanta realidade.
Havia era de ter avisado que vinha cá. Imagine-se que logo nesta noite não está lá ninguém a trabalhar. Com esta borrasca o que apetece é um fumegante chocolate quente e umas belas torradas manteigosas. Poucos hão-de estar a soldar, ou a fazer seja o que seja num estúdio-oficina-galeria-loja. Já sei, se não me abrirem a porta, enfio ali para a Gesto para me aquecer e encontrar possivelmente gente que esteja a descer para a Ribeira. Hoje está o Dinis no Meia-Cave e, ainda antes disso, posso passar nas Flores a deixar esta carga, secar-me e chamar o Michele para acertarmos a conversa no Aniki. Vou chegar seja onde seja completamente encharcada, e ainda bem que meti roupa supelente no saco. Ah, lá está a porta, 213, acho que é 213, era de certeza à direita de quem descia a rua, e a rua tem que ser esta, a dos Caldeireiros, por isso eles chamaram ao espaço Caldeira, mas esse nome também deve ter algumas relações semi-intencionais com o que eles lá fazem, a fundir materiais, ideias, projectos e funções, acho que deve ser ali mesmo, e parece-me que lá dentro há luz.

Fátima Séneca, 13 de Maio de 2008

Saturday, January 2nd, 2010

caldeira213.net // ler / ver / ir / dizer